sábado, 16 de abril de 2016

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte XII)

*


Viana, olá!

Tenho vontade de escrever-te só com símbolos, por medo de repetir-me e tornar-me demasiado previsível. Ou revelar o diálogo que nunca tivemos, como uma mera transcrição desse instante único de cumplicidade que podem ter duas pessoas numa conversa informal. Conversar é tão bom, Viana, e é cada vez mais difícil encontrar uma pessoa que goste de falar.

Tentemos essa partilha, queres? Somos nós dois num dancing lisboeta à beira-rio tomando um copo numa mesa perto do palco. Os músicos ainda estão a preparar os instrumentos, o dj põe no ar uma música bem ritmada, incendiária.

C- Viana…? Viste aquele casal na pista, o rapaz pequenino agarrado a uma mulher alta e vistosa?

V- Na verdade nem reparei, Clara. Mas porquê? Estava atento à música, tentando perceber a letra.

(Risos)

C- Letra? Que letra? Não vás por aí… deixa-te só contagiar pelo ritmo. A música com letra vem depois. Digo, o rapaz pequenino, a quarentona bonita… tenho uma teoria sobre o assunto, que pode dar uma história.

(Franzes o sobrolho e eu sinto-me constrangida).

V- Clara, não sejas mázinha... nem pareces tu. A gente não sabe nada da vida das pessoas. Neste momento alguém pode estar a olhar-nos com a mesma curiosidade… malsã.

C- Não é preconceito, é pós-conceito. Só acho que é um engate com fins, digamos, lucrativos. O rapazinho quer “se dar bem” e procura uma mulher que o possa “peitar”, como diz uma amiga minha muito atenta. Isto funciona nos dois sentidos; há aqui mulheres à procura do mesmo, junto de respeitáveis senhores… ingénuos, claro está.

V- Achas que é isso, Clara? Mas, e se for… que direito temos nós de julgar as escolhas de pessoas adultas, escolhas consensuais…? Não entro nesse jogo, por mais curiosidade que o assunto me suscite.

C- Pois, Viana, talvez tenhas razão. Se for o que penso trata-se de um negócio em que todos lucram: um consegue sustento temporário e o outro um sucedâneo de amor, uma coisa parecida com uma relação na qual a componente sexual é o motor da coisa. Mas a nossa indiferença é sempre conivente. Não pensar, não opinar, já é agir. Mas sei que são opções tacitamente aceites… embora sejam ambos pressionados pelas circunstâncias.

V- Sim, percebo o teu ângulo. Ninguém é totalmente inocente nem culpado. E se fosse, quem os julgaria? Um é vulnerável por ser pobre, ou malandro, outra tem um estatuto social superior e alguma liquidez, para além de uma falta de autoestima notória, falta de tempo ou de interesse para cultivar relacionamentos duradouros… um desfecho previsível no qual existe no entanto um momento, volátil que seja, em que o NÃO é uma opção real. Um não redondo e definitivo.

Neste momento da conversa os artistas entram em palco e nossa atenção deixa-se absorver pela voz possante da Lucibela.


Viana, desculpa-me este despiste, mas não resisti a ensaiar esta troca de impressões improvável entre nós dois diante de uma bebida de cores primaveris. Ou uma simples cerveja gelada, ou um café expresso.

É uma forma de te dizer que gosto que me interrompas quando falo, a isso chama-se conversar. A palavra, quando escrita, já é dona de si mesma, quando se forma na boca e ainda não nasceu, pode ser calada com um beijo.

Há um momento em que é possível mudar tudo e desenhar uma curva numa estrada reta. Fazer uma inversão de marcha. É preciso estar atento para não deixar escapar esse fragmento do tempo.

Na tua última carta noto um tom mais passional e intolerante sobre a superficialidade das coisas, as aparências, as futilidades. Também sou assim. Gosto de procurar a essência. De escavar. Escavacar é uma palavra feia, bruta, mas que exprime melhor o que quero dizer. Essas pessoas de que tu falas (excecionais, marginalizadas, divergentes) são pessoas reais e que resistem, como dizes. Por isso não me admira nem um pouco a tua reação na nossa conversa acima (risos).

Fiquei muito impressionada com o relato que fazes desse senhor que conheceste, que vive na rua e tem o coração no mundo. Certamente um ser único que nos faz ver que nós, os outros, andamos permanentemente em contramão. Mas o idealismo paga-se caro e existe um compromisso mínimo entre o ser humano e a sociedade em que se move, senão dá-se a rutura: social, afetiva, psicológica… é um caminho sem retorno. Para todos nós: os que partimos e os que ficamos.

Eu não quero falar de mim, não hoje, porque tu me intuis e me constróis por dentro. Falando dos outros, do que os meus olhos veem, tu vês para dentro dos meus olhos também.

Temos tido ultimamente a imprensa portuguesa dominada pelos escândalos da política brasileira e tentamos todos, brasileiros ou não, encontrar um tom justo para a indignação, para o protesto, para a reivindicação. Um equilíbrio precário em que é muito fácil cair na manipulação e tornarmo-nos meras marionetas da imprensa e do padrão cultural dominante. Mesmo para os mais esclarecidos.

E continuaremos, tu, eu, a Cris, a Sant’Ana e quantos se quiserem juntar a esta festa das palavras, dos sons e das imagens, a conversar sobre tudo o que nos toca.

Um grande beijo desta tua amiga embarcada numa viagem de desfecho imprevisível.

Clara

Lisboa, 3 de Abril de 2016


*******





Clara,

As coisas aqui no Brasil não estão em seus melhores dias. O cenário é de névoa. Tudo muito nublado. O futuro do país está em jogo. O futuro de um país que, ao que parece, será para sempre “o país do futuro”, e não o país do presente ou do amanhã próximo. Muito turvo é o horizonte. Passei boa parte do dia assistindo à sessão da Câmara dos Deputados na TV Câmara. 31 horas já. De depoimentos ininterruptos. Não pensei que isso iria longe assim. O drama é forte. 

Alguns depoimentos são risíveis. Alguns não, a maior parte deles. Nem na literatura encontrei figuras tão caricatas, grotescas, teatrais, fanfarronas, cínicas. Assim são e/ou se portam muitos de nossos deputados federais. Não dá para confiar na palavra deles. Acordos secretos escabrosos feitos. Panos quentes. Toalhas de enfrentamento ou desistência sendo vendidas, cargos, postos, compensações. Tudo muito escuro. O povo sem saber direito. Dúvidas. Incertezas. Medo. Ódios.

Sou contra o impedimento da Presidenta Dilma, por princípio. E por convicção. Não é bom para a imagem do país lá fora. Não é bom para a imagem do país aqui dentro. Não resolverá os reais problemas da nação. De nada adiantará. É evidente o propósito da oposição. Tomar o poder e não salvar o país. O que está para acontecer é um aborto. Impedimento, como o que está em trâmite e da forma como foi imposta, é uma violência na história política do país. Corruptos julgando outros mais ou menos corruptos. Um aborto, repito. Especialmente quando expõe e acentua a divisão política, ideológica, cultural, econômica e até regional de um país. Isso não favorece a igualdade no país, só reforça os preconceitos, os estereótipos. Um processo vergonhoso.

No Rio de Janeiro, o carnaval pela democracia. Com direito a pão e mortadela. Bem brasileiro. Bem a cara do Brasil. Pão e circo e o povo indo atrás. Que povo é esse? Que país é esse? Uma calamidade. Na capital Brasília, um muro ergueram para separar os dois tipos de manifestantes, os dois tipos de “povo”. Aqui temos dois “povos”. Pode rir, se quiser. É cômico. Os que são contra e os que são a favor. É trágico. Um país de mais de 200 milhões de habitantes agindo como se dois times de futebol disputassem a final de um campeonato de futebol. De um lado o time dos Coxinhas, do outro a equipe dos Petralhas. O prêmio: a Taça do Poder. Um espetáculo.

Uma imprensa manipuladora, interesseira e sem escrúpulos. E tudo pode começar a ter um desfecho no dia de amanhã, domingo, dia 17 de abril de 2016. O dia da votação no plenário da Câmara dos Deputados, uma de nossas “casas do povo” e onde o verdadeiro povo quase nunca tem vez e voz. O dia do “Fica Dilma!” ou do “Fora Dilma!”. 

Uma esculhambação geral. Desmoralizante. Uma tristeza. Torço eu para que nada disso se pinte de realidade e tudo fique como antes e que o antes progrida em face de melhorias necessárias a todos nós, brasileiros. O Brasil ainda precisar crescer muito, em muitos setores da sociedade, e não é com esta cambada de meliantes engravatados que lideram o processo de impeachment contra um partido, o PT, que isso irá acontecer. Torcer. Torcer muito.

Deixando um pouco a política de lado, dizer a ti que gostei por demais de tua criação. Uma conversa possível, eu diria. Você e sua altíssima qualidade criativa, Clara. Não é para menos, não é? Mas, de toda forma, foi uma surpresa boa para mim. Bom demais ler a fantástica introdução em sua produção textual. Uma conversa que versa sobre humanidades. Humanidades e “engenharias humanas” misteriosas. Dizer que quero sim, esta partilha! E que sempre quererei.

Aqui o sábado foi de frio. Caruaru com cara de São Petersburgo. Dia branco. Minh’alma também, branca. Há um vazio. Uma expectativa. Quando tudo se cala dentro, mesmo me sabendo forte o suficiente para seguir. Quando a poesia dentro da gente se cala. Cálice. Tortura. Algo que oprime. Algo que atordoa. Algo que atravanca. Por isso a escolha por pausar aqui. Pausar e esperar. O pulso. A lâmina. Eis a vida.

Até logo mais, Clara querida.

Caruaru-PE, 16 de abril de 2016.


********

Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

Nenhum comentário: