domingo, 6 de março de 2016

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte XI)

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Meu querido Viana:

Desde a tua última missiva de 7 de Janeiro que tenho andado literalmente a ruminar as tuas palavras e o que me contas. Sendo o conteúdo o mesmo, creio que o aprecio diferentemente conforme os dias.

Ficou-me na memória o teu relato sobre o incêndio na Chapada Diamantina, o que me fez recordar os incêndios que por estes lados grassam também todos os anos. Ficam quase sempre por esclarecer, mesmo que muitas hipóteses sejam levantadas quanto à sua origem: desleixo, mão criminosa manipulada por construtoras gananciosas e inescrupulosas, atos de puro vandalismo ou praticados por algum pirómano, julgo que já vimos de tudo um pouco, se não provado, pelo menos no terreno da especulação. Em tempos falava-se de chuvas ácidas, argumento que tem vindo menos à baila ultimamente. Em todo o caso é escandaloso e trágico o que se destrói em todo o mundo como consequência dos incêndios, todos os anos, sem que consiga pôr em prática um conjunto de medidas preventivas realmente eficazes. As matas são extensas e não se pode vigiar cada mm² de terra. Nem de maldade humana, malícia ou seja o que for.

Também sobre a tua nota sobre Borges, de quem nunca ousei ser verdadeiramente fã, talvez por achá-lo grande demais para os meus olhos, fiquei fascinada com o texto que encontraste sobre ele. Tenho uma curiosidade grande em saber quem seria a autora mas talvez seja bom resguardar esse mistério e manter o foco no texto, de uma beleza dorida e instigante. Só as mulheres são capazes de (d)escrever tais coisas, ou alguém que possa sentir como elas, como nós. Retenho uma das frases finais: “Se na minha lápide estiver escrito apenas “Uma mulher que amou um poeta”, eu ficarei feliz”. Pode ser que um dia escreva o mesmo, som por som, tecla por tecla.

E sim... Viana, eu também adoro surpresas, sobretudo as programadas e que se saboreiam com antecedência!!!. E gosto muito de aprender contigo palavras e significados, como o verbo “embonitar”, essa derivação tão suave que aplicas com delicadeza, de tal forma que já faz parte do meu vocabulário também. (Mia Couto, aqui vou eu, aqui vamos nós, de asas abertas para todas as derivações que nos tornem os dias mais azuis. E aqui faço uma vénia respeitosa a ele, o homem que escreve prosa mais poética que a própria poesia e que me ensinou outros mundos através de derivações e corruptelas roubadas à língua dos falantes, magníficas e improváveis: a “subfície” do mundo, o papel “marrotado”, “rodilhar” o coração, as letras “incertinhas”, ou a velha que insistia, “cismalhava”. Não é de uma beleza imensa que escorre pelos olhos?). A minha filha dirá, quando nos ler, que eu sou realmente a mulher dos apartes longos….

Sobre silêncios, muito haveria a dizer ainda e mais, creio eu, a calar. Pressinto que concordas. Mas não gosto de silêncios que afastam, apenas daqueles que nos servem para renovar o fôlego e arremeter com mais força ainda. E como vão os teus, meu amigo?

Subscrevo inteiramente a tua ânsia de viver o repentino, o inusitado. Ainda não cheguei à fase de preferir essa paz rotineira, como pano de fundo. A minha inquietação é-me vital e a paz apenas uma fugaz consequência porventura salutar por efémeros instantes e nalgumas tardes chuvosas de domingo.

E não posso deixar de comentar a tua descrição sobre o lamentável episódio de racismo e esnobismo, no caso do grupo que condenava de maneira claramente preconceituosa a relação da médica com um “atendente”. Eu também já presenciei atitudes baixas como essa inúmeras vezes na minha vida e causam-me sempre uma incontida revolta. Como se a felicidade e a facilidade de relacionamento entre pessoas dependesse do grau académico ou da cor da pele! Tais comentários revelam uma ignorância atroz, maldade, intolerância, desconhecimento do mundo e das pessoas. Pensar que uma relação só pode ser bem-sucedida entre duas pessoas do mesmo nível social, status, padrão financeiro, grau académico, cor de pele e outros parâmetros da mesma índole é de uma ingenuidade espantosa, próxima do embrutecimento. Custa a crer que estamos em pleno século XXI. “Nauseabundos”, o teu adjetivo, resume tudo. Numa análise mais desapaixonada, e não sendo psicóloga nem socióloga, diria que por motivos óbvios é mais fácil pessoas aproximarem-se quando têm interesses comuns e um estilo de vida parecido. E percursos de vida que facilitem os encontros, que tornem mais fácil e fluido o convívio. Mas as exceções são tantas que seria ridículo querer definir um paradigma de aproximação que garanta o sucesso de uma relação, seja em termos afetivos, profissionais, ou outros. Graças a Deus que fomos poupados a uma educação tão isenta de valores, tão flagrantemente preconceituosa.

Resistamos, pois, meu querido Viana.

Sobre as novas experiências que fazem doravante parte da tua vida, fico feliz e vagamente curiosa por saber do teu interesse pelas artes marciais e da tua dedicação ao desporto, ao cardio-fitness, pelo que percebo. Li algures que o exercício físico é um antidepressivo natural, do melhor que há, a usar sobretudo de forma preventiva. Eu fico-me pelas caminhadas e pela dança, que me são vitais, embora me abra a ambas de forma inconstante e algo rebelde.

Solidão, nem vê-la! Façamos um pacto: eu ajudo-te a livrares-te da tua e tu ajudas-me a correr com a minha. Que se entendam ambas bem longe de nós!

Por aqui posso dizer-te que nesta teia que construímos os dois fica ainda muito por contar. Houve por cá uma eleição presidencial com resultados previsíveis. Entretanto a nossa constituição não confere poderes por aí além ao PR pelo que este acaba por tornar-se uma figura meio apagada, um árbitro que dirime conflitos, uma figura para a política externa. O nosso homem dá pelo nome de Marcelo Rebelo de Sousa, é um catedrático muito respeitado no meio académico e um analista político conhecido, com ampla exposição mediática desde há décadas. Um sedutor, carismático e orador invulgarmente dotado. Quanto ao resto, leia-se, ao futuro imediato, veremos. Há o saber e há o saber fazer. Poderá um bom treinador e comentador de futebol jogar como avançado? Ou à defesa? Ou à baliza? Tem graça estas comparações vindas de alguém que entende ZEROxZERO de futebol!

Falando de mim, de coisas que nos interessam a um nível mais pessoal, tu sabes, penso eu, que estive com a Cris naquele pequeno paraíso chamado Vimieiro. Aquela menina é uma amiga de toda a vida e para a toda a vida. Nós comemos, bebemos e conversámos como já nem se usa, aprendemos uma da outra e partilhámos mesa e diversão. Passeámos e sentimos a tua falta e ao mesmo tempo a tua presença. Fotografámos e fizemos comidinhas boas, regadas com bons tintos alentejanos, ensinámos e aprendemos Alentejo afora, prometemos viver mais aquele pequeno paraíso com amigos que queiram lá estar e beber daquele ar e mansuetude. Este é o Vimieiro que tu vais conhecer, bem perto de Évora, de Estremoz, perto do céu. E falando em prazeres simples e doces e em cultura, não posso deixar de voltar a desafiar-te para ouvires a nossa querida Sant’ana, uma e outra vez; ela canta nos mais variados registos, para além de mornas canta também alguns clássicos da música romântica que incluem Marisa Monte e Elis Regina, Ruy Veloso, Elvis Presley e temas de fado. Consegues imaginar tudo isso? Se não, vem para cá. Agora.

Que mais te posso contar? Do que tenho, nada, porque não tenho nada. Do que sou, nada também, porque já sabes tudo, ou quase, ou o que importa. Do que vou vivendo, do que vou sorvendo da vida. Um pequeníssimo episódio: há dias num hospital privado duas amáveis senhoras faziam recolha de donativos para uma instituição que ajuda crianças vítimas de maus tratos; perguntaram-me assim: quer colaborar? aqui cada um dá o que pode. E eu respondi apenas: vou dar-lhes o que não posso, porque o que posso eu já dei... as senhoras escudaram-se num sorriso surpreso e receberam com gentileza o meu minúsculo donativo. (Quanto menos podemos dar, seja o que for, mais sentimos esse apelo, não te parece?).

Viana, estou feliz por voltar a encontrar-te por aqui, porque tu me incentivaste a comunicar. As coisas não têm sido fáceis, mas nas nossas trocas de impressões e de afetos chega a parecer que são.

Recebe um abraço imenso e forte.

Até já, Clara.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2016.


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Clara, boa noite.

Aqui o relógio marca exatamente 19 horas e 29 minutos de uma noite razoavelmente fria e aprazível. Você começa seu palavreio me recordando incêndios em minha terra natal. De uma alma sensível cair em prantos, eis a verdade. E eu começo proferindo um "não", minha estimada Clara. 

Desculpe-me por iniciar meus dizeres de forma tão firme, como agora. Há momentos em que o coração da gente pula, saltita feroz e até age por impulso. Pulsamos inteiros, completos, incompletos. É pelo que a sua filha lhe diz, seus apartes longos, que você muito me encanta, Clara. Você é verdade e suas palavras revelam seus valores. Inventariar palavras é coisa boa, bonita, profissão dos grandes artistas das palavras. Nós, feitos de linguagem, apreciamos além. E que seja assim. E que sejamos assim, réguas disformes construtoras de mundos.

É dessa resistência que a humanidade necessita. E nisso, Clara, a gente se ajuda. A gente se anima e seguimos assim, confiantes, entre palavras e rumos. Solidão não é coisa boa em todas as horas. Solidão tem hora certa para ser boa. A presença das pessoas, em todos os cantos, o convívio com elas, mesmo sendo em momentos de exercitar o corpo, auxilia o desenrolar da vida e até nosso autoconhecimento. A prática de alguma arte marcial é por mim observada como uma ponte para nós mesmos. Trabalha-se muito o equilíbrio entre a força e a mente. Já experimentou a prática de alguma, Clara?

Tem graça sim, Clara, a tua comparação político-futebolístico. Torço para que as coisas se ajustem por aí e que os discursos todos sejam cumpridos em verdade. Aqui no Brasil, o panorama político – se é que se pode classificar assim – não anda nada animador. Fizeram um rombo enorme na nossa maior empresa estatal, a Petrobrás, e agora os corruptos estão se digladiando para ver quem escapa com menos feridas. Uma jogatina de interesses que dá nojo de ver, Clara. Coisa sem tamanho! Coisa imensa!

E mesmo imaginando todas as belezas que me contas, Clara, as suas, as da Cris, as da Sant’ana, mesmos suspeitando de tudo, vou aí de igual maneira. A vontade só aumenta e um dia seremos nós todos, juntos, em apreciação do Belo e da Vida. Dar-nos-emos inteiros, por amor ao amor e ao outro. Ah, Clara, e este relato final! Quanta sinceridade em sua fala! Pois que a vida só tem sentido se compartilhamos ela, em doação mesmo, em todos os aspectos. E são nestas doações de nós que nos fortalecemos. Não é assim com o ofício do texto, da palavra? Para quê serviriam se não pudéssemos partilhá-las?

Com um rude apreço por ti e por todos que te cercam, despeço-me por hoje, Clara. Na certeza de que o Atlântico não é tão grande assim.

Beijos deste marinheiro embarcado no sem-destino, corajoso o suficiente para adentrar o alto-mar.

Caruaru-PE, 06 de março de 2016.


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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

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