sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Noturnos parideiros

*
Por Germano Xavier

com colaboração de Júlia Viana


um dia
quando pequeno
ouvi dizer que no roçado 
de meu bisavô
havia um lugar 
onde só podíamos ir
no período da noite
um lugar

onde eram paridas
as sombras

estávamos na mesma história
de um mesmo livro
em capítulos diferentes
unidos pelo (re)verso da última página
separados pelo título da narrativa seguinte
em uma aproximação adormecida
geograficamente calculada
num abraço cego das folhas

éramos dois personagens
atuando em papéis reais
condenados ao encontro um do outro
no descuido do abrir daquele livro
durante uma ventania
em rebeldia das páginas
no folhear do destino
a permitir lapsos de olhares
breves, mágicos, profundos
sem tempo pra decifrar a eternidade

éramos dois prisioneiros
a presenciar um fim e um começo
tropeçando em novos viveres
sem nos importar com o desfecho do outro
desconfortáveis com o barulho das palavras
espremidos ao embaralhar das letras vazias
testemunhas das tramas alheias
que ousavam cruzar nosso desenrolar
a nos julgar pelo nosso culto "exótico"
ao silêncio...um delicioso espaço sagrado de liberdade

éramos dois em um
protagonistas de um drama maior
sem ao menos suspeitar
encontrávamos secretamente
na fuga à procura por aquele espaço
vazio de vozes, extraordinário em sentidos
era ali a fonte...renovação para continuar
estávamos nesse trecho
sentados de costas para o outro
respirando o mesmo ar
a trocar desabafos telepáticos

e no virar das páginas
um (re)encontro inesperado
deslocados para o mesmo capítulo
talvez reservado ao ápice
eu recém-chegada do Rio
você, de Macondo
diante da fúria do chamado
dançamos a passos lentos
depois...a rodopiar com a fantasia
numa libertação de essências
escolhidas pela excitação
das descobertas dos cheiros
pelo faro das almas

adiamos a hora da despedida
iludimos tempo e espaço
criamos nossos mandamentos
regidos pelo desejo do bem querer
na celebração da suspeita do amor
sem limites, sem controles
barramos pressentimentos de censura
numa condenação quase certeira
não por nós...pelos espectadores
que sabiam desde o início
do poder da atração arrebatadora
diante de uma aproximação maior

você entrou em minha história
que insistia em terminar antes da hora
remodelou meu ponto final
em exclamações de explosão da existência
estavas a todo instante ali
eu não via, não lia, não sabia, não entendia
meu rumo ganhou cores e brilhos
meu capítulo virou a história, o próprio livro
minhas ações ganharam fôlego e vidas
num desenfrear do ritmo do viver
compartilhado apenas com você

me flagrei encantada por tal figura generosa
que concebia lindos personagens em um
todos voltados para mim
com o único propósito do amar
disfarçados pelo teu olhar discreto
ao invadir prisões de segurança máxima
apenas no instante de um piscar
reflexo que me assustava
pela perspicaz silenciosa
de alguém que me desnuda
ao enxergar além da capa
segredos e mistérios já velados

inevitável não querer para sempre
viver ali naquela história, na nossa história
vislumbrada antes pelas sombras das páginas
iluminadas de repente em preto e branco
pelo prisma genial da arte do teu olhar
que aprisiona do modo mais doce
e se personifica sob todas as formas
em todos os personagens selecionados
para evitar um desfecho trágico
seja na minha loucura, sendo o divã
seja no proibido, sendo meu cúmplice
elevando alegrias a infinitas potências
num simples detalhe, fazendo a diferença
e até nas horas inflamáveis do desejo

e de repente...silenciados por tanto amor
continuamos ali: juntos, livres, firmes
aprisionados por escolha num doce vício
de eterna renovação do descobrir
"que um não vive sem o outro"
e fechamos as portas do nosso livro
para que não nos incomodem
voltamos à infinitude leve e louca
da hipnose de amar
estamos aqui, agora, ali e outrora
um voltado ao outro, sem piscar
um olhando desesperadamente
para a tentação do olhar do outro, reflexo
que abre corpos, almas e dimensões...


* Imagem retirada do site Deviantart.

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