quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Pequenos olhares sobre alguns poemas


Poema 1

RETIRA-SE DESDENHOSA DO POETA PARA HUM SOLDADO DE CUPIDO A TEMPO, QUE ELLE FAZIA O MESMO COM ANNICA.

Quita, como vos achais
com esta troca tão rica?
eu vos troco por Anica,
vós por Nico me deixais:
vos de mim não vos queixais,
eu, Quita, de vós me queixo,
e pondo a cousa em seu eixo,
a mim com razão me tem,
pois me deixais por ninguém,
e eu por Anica vos deixo.

Vós por um Dom Patarata
trocais um Doutor em Leis,
e eu troco, como sabeis,
uma por outra Mulata:
vós fostes comigo ingrata
com a grosseira ingratidão,
eu não fui ingrato não,
e quem troca odre por odre.
um deles há de ser podre,
e eu sou na troca odre são.

Eu com Anica querida
me remexo como posso,
vós co Patarata vosso
estareis bem remexida:
nesta desigual partida
leve o diabo o enganado,
porque eu acho no trocado,
que me vim a melhorar
mais na Moça por soldar,
que vós no Moço soldado.

Se bem vos não vai na troca
pela antiga benquerença,
eu sou de tão boa avença,
que farei logo a destroca:
porém se Amor vos provoca
a dar-me outros novos zelos,
hemos de lançar os pêlos
ao ar por seguridade,
e eu sei, que a vossa amizade
há de custar-me os cabelos.


Poema 2


EPITAFIO À MESMA BELLEZA SEPULTADA

Vemos a luz (ó caminhante espera)
De todas, quantas brilham, mais pomposa,
Vemos a mais florida Primavera,
Vemos a madrugada mais formosa:
Vemos a gala da luzente esfera,
Vemos a flor das flores mais lustrosa
Em terra, em pó, em cinza reduzida:
Quem te teme, ou te estima, ó morte, olvida.


Para começo de conversa, é preciso salientar que o poeta Gregório de Matos tinha absurda e considerável ciência acerca do que produzia. É preciso uma boa dose de vivência para que um determinado escrito consiga elevar-se como obra e conquistar outras dimensões de significação e representatividade. Ele, o “Boca de brasa”, é um retrato fiel da idéia de que a vida imita a arte, e também o inverso. Gregório viveu, comeu e bebeu do seu tempo. Para Alfredo Bosi, o bardo “é mais do que uma figura e um autor porque retrata, sob muitos aspectos, e tipifica, em quase toda a sua obra, o meio e o tempo”. E quando voltamos o nosso olhar à retratação da figura feminil em sua obra, cuja autoria é ainda bastante polemizada, nada acontece de modo discrepante. Analisando os poemas supracitados, percebe-se claramente um posicionamento ideológico baseado em extremismos. De um lado, fica fácil identificar uma visão essencialmente preconceituosa perante a mulher negra. Diante da questão, Gregório não titubeia, e escreve com a inicial maiúscula o termo “Mulata”. O destinamento e a evidência de um racismo é por demais escancarado. O poema tem como enredo, se assim pode-se aferir, um troca-troca envolvendo duas mulheres e dois homens. As mulheres, aqui, são negras e vêem-se traduzidas à míseras mercadorias ou produtos de negociação. O poema primeiro se desenvolve, do início ao fim, numa atmosfera densa, marcada por uma tensão que envolve os paradigmas do “ter”, do “poder” e, mormente, da efemeridade das relações humanas. Comparado ao segundo poema, este totalmente encaminhado sobre um território ameno, livre de aturdimentos e tensões, fluido e mais contemplativo, uma vez que o seu destinatário é uma mulher de pele alva, portanto digna dos mais altos congraçamentos. O primeiro poema expõe uma linguagem mais coloquial, chegando a beirar a vulgaridade, aproximando-se de um erotismo encadeado por expressões e jogos de palavras por demais singulares. Para corroborar da idéia de aproximação do que é popular através do uso de uma linguagem diferenciada, Alfredo Bosi vai ainda dizer que “não menos interessante é o estudo da contribuição de Gregório de Matos para a aproximação entre a linguagem literária e a linguagem popular, pela maneira como introduziu em suas composições não só palavras até então proibidas ou vedadas ou mal aceitas como expressões de uso comum”. No segundo poema, dedicado a Dona Ângela, a comparação elogiosa concebe à personagem um caráter de gigantismo e inesgotável estima. Dona Ângela, mesmo morta, é possuidora de uma beleza quase inefável, indiscutível. Aqui, a dualidade temática Vida X Morte faz-se demasiado presente. Eis, pois, poemas comprimidos em antagonismos, dum poeta-marco do Barroco, que pouco soube fingir a arte do fingimento das relações humanas, das coisas e do mundo.


Agora leia os seguintes poemas, de Gregório de Matos e Cláudio Manuel da Costa, respectivamente:


Ao Braço do Mesmo Menino Jesus quando Appareceo

O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.

Em todo o Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo


VI

Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver nos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis entoa a voz cadente!

Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente!

Recebei (eu vos peco) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado:

Este pranto, estes ais, com que respiro,
Podendo comover o vosso agrado,
Façam digno de vós o meu suspiro.


Fazendo um quadro comparativo entre os dois poemas:

Poema de Gregório de Matos

• Cultismo – o jogo intencional com palavras;
• Tentativa de reafirmação de um teocentrismo titubeante;
• O “chocar” em cada verso;
• Ambiente tenso, conflituoso;
• Construção imagética superestimada;

Poema de Cláudio Manuel da Costa

• A natureza como elemento primordial;
• Presença de elemento mitológico (fílis), com retorno aos ideais greco-romanos;
• Linguagem simples, sem rebuscamentos gratuitos;
• Relação de intimidade com a natureza, vista como fonte para a razão;

No poema árcade, o homem consegue, após consideráveis embates, encontrar-se. E é a natureza, o ambiente bucólico, o fator que ilumina o ser. Nela, sendo-a e estando inteiramente entregue a ela, o homem encontrar a necessária paz e a vida harmoniosa, pautada numa lida ponderada, racional, e sem aflições. Já no poema barroco, o humano confunde-se com a própria parte e o próprio todo conflituoso. O linguajar, o modo como a palavra e a imagem é confeccionada transforma-se em mais um entrave para a compreensão, impedindo o suave transcorrer da leitura por parte do leitor.

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