domingo, 5 de maio de 2013

Teia


Por Germano Xavier

Era uma noite escura de outono, enluarada e com estrelas parecidas a chamas de velas em castiçais. Todo o céu num azul bravo, empretecendo, como uma casa aberta ao deus-dará. Por isso um suspense, um algo pairando, bruxuleante. Eu me encontrava no quarto, com uma toalha bem felpuda sobre o meu ombro direito. Na mão esquerda, um sabonete perfumado, numa tentativa de equilíbrio, ao mesmo tempo em que carregava a escova com uma opulenta dose de creme dental. Estava quente e um banho seria solucionador para uma agonia de corpo, tão natural. Levei tudo aos poucos para o banheiro, desistindo da arte dos malabares. Pendurei a toalha no prego, depositei o sabonete no receptáculo e a escova próximo ao espelho. Após travar a porta, avistei de imediato uma pequena aranha amarela. Dentro do box, havia um claro especialmente forte. Num enlace estranho, estávamos nós dois, eu e a pequena aranha amarela, em instantâneo convívio, como que dentro de um mesmo vagão de trem. Ela estava parada, aparentemente inerme, provavelmente confeccionando alguma idéia. O espelho preso na lateral refletia apenas as quatro patas angulares da secção esquerda do invertebrado. Vista através dele, a aranha aparentava ser um pouco maior no quesito envergadura de “pernas”. Suspeitei de que aranhas não poderiam pensar, pois não sabem que sabem, pois não são como nós, humanos, donos do raciocínio e da imaginação. Completamente nu, já com o rosto entremolhado, aproximei-me do frágil aracnídeo. Uma aproximação dolorosa, a priori, mas extremamente calculada. Nunca fui de simpatizar-me com aranhas, sempre me pareceram asquerosas demais, além de incitarem valores individuais e vaidosos, sobremaneira. Apoiando as minhas duas mãos sobre os joelhos, pude ver curtíssimos pêlos enfeitando-lhe o abdômen. Era uma aranha amarela e estava ali, silenciosa, descobrindo minha privacidade. Afastei-me, violentamente, após um breve olhar. Toda distância, agora, transportava um incômodo. Dentro de mim, um enregelado medo se anunciava. Tateei o vidro, esbocei um pequeno salto para o outro lado, mas logo resisti. Era preciso fazer alguma coisa, tentar uma eliminação. Senão, ela, provavelmente tomaria conta do cômodo inteiro, alimentar-se-ia de pequenos pernilongos noturnos e de outros ínfimos insetos, ali mesmo cresceria, ganharia vigor e autoconfiança, tomaria a forma de uma caranguejeira, aumentaria sua força e imponência, causar-me-ia mais e mais asco e temor, cresceria ainda mais, num sem-fim, fazendo daquela repartição o seu castelo inviolável. E eu para sempre me tornaria um covarde, um medroso, um medíocre. Isso não, jamais! Mas alguma coisa ulterior a mim dificultava o meu gesto, o meu golpe final. Era uma simples aranha e eu - meu deus! -, eu era um homem centenas de vezes maior que ela, milhares de vezes mais poderoso. Indefesa, incapaz de qualquer maldade, sob os meus olhos mais atenciosos, que mal uma pequena aranha amarela poderia me causar? Naquele mesmo instante, enquanto preparava-me para abrir o registro do chuveiro, reparei que ela havia mudado de lugar. Estava agora na altura dos meus olhos, como que me olhando clinicamente. O que estaria ela pensando? O que estaria ela querendo de mim? Nesse entretempo, um frio na alma me ocorreu. Pensei no extermínio, na definição do caso. Estávamos num vagão muito bem iluminado, desconfortavelmente interessados um no outro, completamente impedidos de nos ater a outra coisa, senão em nossas atitudes. Dialogávamos sem precisar de palavra alguma, inconscientemente. A aranha poderia estar pensando, tramando algo, construindo uma estratégia de ataque. Quase exausto, suado, sujo de pensamentos, comecei a juntar dentro de minha boca uma boa porção de cuspe, e quando a matéria encontrava-se demasiado espessa, atirei-a na direção da aranha num sopro certeiro. Ela tentou se desviar daquela gosma esbranquiçada, mas fora atingida em cheio, ficando apenas com uma das patas livres do material pegajoso. Só depois de confirmar a impossibilidade dela de elaborar qualquer movimento é que abri o registro com água morna. Por mim, a aranha permaneceu ali naquela noite. Nada mais fiz contra ela. Mais sossegado, dormi com uma tranqüila impressão durante toda aquela madrugada. Porém, quando na manhã do outro dia descerrei a porta do banheiro, uma angústia me tomou os ossos. A pequena aranha amarela não estava onde a tinha deixado, possivelmente sem vida devido ao sufocamento que lhe causei com meu cuspe. Silenciei-me, circunspecto. Foi quando escutei um barulho esquisito vindo de dentro do meu quarto.

2 comentários:

Cris Campos disse...

Você é fantástico! E tem toda razão, ela nos incita valores individuais e vaidosos, sobremaneira! Demais esse texto! Gr. Bj.!

Ana Rosa, SP disse...

Ótimo texto, muito instigante