quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Os estranhos cavalinhos de J. J. Veiga


Por Germano Xavier

O nome do livro já provoca um meio-espanto: Os Cavalinhos de Platiplanto. O curioso, pergunta-se: mas que diabos é Platiplanto? Doze contos e pouco mais de 120 páginas. O apressado diz: livro bom é livro grosso. Um tal goiano de nome José J. Veiga assina o livro. O outro vai e retruca: nunca ouvi falar. Estamos falando do livro que há exatos 62 anos – a primeira edição foi publicada em 1959, com o autor já com 44 anos de idade – inaugurava o gênero Realismo Fantástico na literatura brasileira. 

Aproximadamente 12 anos antes, em 1947, Murilo Rubião invadira o cenário de nossa literatura com contos também fantásticos, o que ainda hoje é motivo para embates acerca de quem realmente é o precursor desse tipo de escrita em solo nacional. E, como se não bastasse, chega um por detrás e sussurra: o que significa Realismo Fantástico? Para melhorar as coisas, se eu disser que o colombiano Gabriel Garcia Márquez, autor do clássico Cem anos de Solidão, o belga-argentino Julio Cortázar, cuja obra-prima é Rayuela (O jogo da amarelinha), Vargas Llosa e Jorge Luis Borges são expoentes natos deste subgênero literário, marco literário da segunda metade do século XX em toda a América Latina, é bem provável que a penumbra comece a esvair-se, e terminemos adentrando um pouco menos leigos neste mundo “real-fantástico”, de estro kafkiano.

Também há dez anos – o escritor, nascido em 1915, morreu aos 84 anos - J. J. Veiga nos deixava, o que fez surgir, sem sombra de dúvidas, uma imensa lacuna em nossas letras. Tratado como inovador e extremamente maduro pela crítica, seu primeiro livro foi logo abocanhando os principais lauréis literários existentes no Brasil naqueles idos, a citar o Prêmio Fábio Prado, um dos mais concorridos até então. 

Narrados em primeira pessoa, os contos presentes em Os Cavalinhos de Platiplanto são marcados por uma forte aura de “brasilidades”, ambientações e expressões regionalistas, retratando reminiscências, estas com características aventureiras ou não, vividas tanto por personagens infantes quanto por adultos. Num tom quase que avesso à denominação fantástica dada à sua obra, o autor preferia dizer que seus textos geravam não um “realismo fantástico”, mas sim um “mundo fantástico real”.

E justamente nesse contraponto, ao qual se insere o real e o irreal, o que é e o que não é, o verídico e o fabuloso, é que destoa a pena mágica veigueana. Os contos são fabricados de tal maneira que, em dado momento, perguntamo-nos: “mas o que há de interessante nisso?”, como por exemplo, no relato de uma fábrica que é instalada atrás de um morro, fato que causa mudanças rápidas e impensadas no cotidiano das pessoas (conto A usina atrás do morro), ou na história de um pacato professor interiorano que diz saber o roteiro para um antigo tesouro, que sofre com a desconfiança oriunda da população do lugarejo e que um dia resolve fazer um protesto contra todo o descaso vivido por ele (conto Professor Pulquério). 

Até aqui, nada de tão intrigante. Mas é bem no trato substancial do que aparenta normalidade que Veiga urde com maestria o seu absurdo temático, quase sempre pegando o leitor desprevenido e atirando-o num universo perturbador, extremamente estranho, apesar de parecer simplório ou sem bifurcações quando ao sentido. Um exercício surreal é pincelado em tons amenos, porém firmes, talvez para não afugentar o leitor menos atento, que como queria Cortázar, percebe-se diante de um tipo de conto que prestigia a unificação de mais de uma “narrativa” dentro de uma única história. Segundo Candido, os contos de Veiga são “marcados por uma tranquilidade catastrófica” (CANDIDO, 1987, p. 211).

Fruto de uma reformulação literária, presenciada principalmente a partir da instauração do regime militar no Brasil em 1964, a literatura dita fantástica iria romper com as insinuações exacerbadamente realistas, por conseguinte quebrando também com os modelos advindos de um naturalismo já em “irreversível” desgaste. Em seus contos, Veiga busca o insólito, e no uso da ficção faz germinar de suas mãos uma realidade alegórica, distante do que possa simplesmente parecer. 

A tensão entre o cotidiano e o insólito vai sendo criada ao passo que invadimos as páginas e os pormenores do livro, num movimento de ascensão gradativa – nunca acontecendo o sentido inverso -, para no final terminar por eclodir alguma coisa, revelar algum segredo que ficara perdido no meio da trama ou desmascarar um mistério que estava à vista de todos, todavia imperceptível. O final é quase sempre apoteótico, mesmo sem exageros. 

É como se Veiga não estivesse, em nenhum momento da obra, disposto a correr o risco, inclusive extremamente natural aos escritores fantásticos, de ter suas narrativas muito distanciadas da “provável” realidade, o que poderia dificultar a compreensão dos textos, mas soubesse muito bem lidar com as dimensões limítrofes tanto do real quanto do irreal. No fundo sabia que, “para assumir significação, o fantástico necessita criar uma curva que o reconecte com o mundo” (LIMA, 1983, p. 207). Nesse jogo, Veiga superestima a linguagem informal, sem banalizá-la, aproximando-se da literatura produzida por seus escritores prediletos, a citar J. D. Salinger, autor do best-seller O apanhador no campo de centeio, e Graciliano Ramos, romancista brasileiro da geração de 30.

Outro ponto a ser ressaltado é a sua ligação com o momento político brasileiro. Veiga desmente muito da crítica produzida sobre tal relação, mas muitos estudiosos de sua literatura insistem em fazer tais ponderações. Em Os cavalinhos de Platiplanto, talvez o conto mais discutido a partir desse pressuposto seja A usina atrás do morro, cujo teor seria condicionado diretamente ao governo do presidente Juscelino Kubitschek e ao impacto da entrada do capital estrangeiro em nosso país. 

Wilson Martins, na orelha da décima oitava edição escreve: “liberto das escolas e das modas... deu à literatura brasileira um daqueles livros pessoais e verdadeiramente novos que assinalam a história dos gêneros: na contribuição quantitativa do conto, ele trouxe, com o sr. Dalton Trevisan, a contribuição qualitativa, a do conto mergulhado num mundo próprio, preso a contingências específicas e criando, pela magia do estilo, novos planos da sensibilidade literária”. 

J. J. Veiga, que nasceu José Pereira Veiga, ganhou esse nome artístico do mineiro João Guimarães Rosa, depois de alguns estudos numerológicos. O J. do centro significaria Jacinto, oriundo do sobrenome da mãe, fator que – acreditavam - lhe traria sorte. Estudou Direito, trabalhou em rádio e no meio jornalístico, inclusive traduzindo e comentando programas na rede BBC de Londres. Quer saber no que deu o protesto do Professor Pulquério, a chegada da misteriosa usina, as peripécias de Cedil e Tenisão, por onde anda o cavalo Balão ou mesmo a espingarda de Seu Juventino? Quer saber onde fica Platiplanto? Então, o que está esperando?!

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CANDIDO, Antonio. “A nova narrativa” in A educação pela noite e outro ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

LIMA, Luiz. Costa. “O conto na modernidade brasileira” in PROENÇA FILHO, Domício (org) O livro do seminário. São Paulo: L. R. Editores, 1983.

VEIGA, José Jacinto. Os cavalinhos de Platiplanto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

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