segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Um homem que apenas queria morrer


Por Germano Xavier

Borges queria morrer. Borges queria o esquecimento na Argentina que estampava uma vontade esquisita por ditadores. Acostumado à sua solidão e à solidão da calle Maipú, Buenos Aires parecia uma distante sede de felicidades. Naqueles idos, é bem verdade, não haveria mais razões para esboçar, ele, Borges, qualquer sinal de alegria interna. Melhor duvidar de que aquele homem jamais fora feliz em toda a sua vida. Uma situação a ser pensada, certamente. Para que um homem mentiria sinceridades num mundo que não era o seu? Faria alguma diferença esquecer-se de que este mundo, este, calcado em potencialidades sem forma nem conteúdo, existe realmente? Dono de mundos tão melhores, imagino, com certeza Borges não se importava com as defi-ciências dos tipos humanos que por este mundo vagavam, mundo que não era o seu de origem.

Duro mesmo teria sido o fato de ter de suportar, por longos anos, já quase cego e inoperante, o peso de todo um mundo doentio, fraco, claudicante e impróprio para o uso humano. Talvez essa teria sido a causa para todo aquele caminhar sôfrego, trôpego, para o uso indiscriminado de uma bengala na mão esquerda, para os constantes tropeços nos móveis escuros daquele sexto andar sombrio, com aspecto decrépito, mofado, praticamente indiferente à qualquer aspecto de vida.

Borges não viveu em vida. Borges não viveu nesta vida, ou por não querer vivê-la, acabou percebendo que esta não valia a pena, que era mesmo uma espécie de passagem definitiva para uma outra dimensão por ele já conhecida. E assim o fez. Descobriu-se possuidor de paraísos quando se enveredou profundamente nos caminhos que cada livro aberto lhe revelava. Descansou eternamente, para nunca mais voltar, sobre uma pastagem de signos, palavras e idéias. Não poderia nem pensar em desejar um retorno. Borges nunca mesmo pertenceu ao grosso deste medíocre mundinho. Borges era centelha, estrela, fogaréu, explosão, cataclisma, super-nova. Borges era amplidão.

Mesmo assim, consternado e mal resolvido, Borges lutou durante toda a sua extensão vital a favor da morte de seu corpo. Não queria viver o corpo, massa imprestável, bolo de carne sem gosto, intragável, alimento insosso para o mais faminto animal. Borges queria morrer. Borges queira uma lâmina e o corte dilacerador, esquartejante, mortal. Queira, Borges, a fatalidade, o homicídio, o assassinato, o acidente, a fúria, o ódio, a desesperança, a vingança, o suicídio, o golpe fulminante no peito nu, o sangue a escorregar pelos ladrilhos sórdidos formando um rastro escarlate coagulador do Tempo, seu maior inimigo. O Tempo, esse Deus, seu atroz.

Borges queria matar o corpo, e o seu corpo era a sua palavra. "Ninguém deve se preocupar com o que escrevi a vida inteira", uivava, assustado com toda a sua fraqueza e incapacidade, o lobo argentino. Era deveras um embate muito difícil. O homem contra a maior das deidades, a Palavra. Tinha fincado uma estaca no abismo do mundo que ele tanto rejeitava. Não sabia como se livrar de tudo que havia construído, alicerçado em gusa e concreto puro, mesmo aquele homem dono de mundos inumeráveis. Talvez faltasse em sua biblioteca mágica um manual que ensinasse como desconstruir castelos e arranha-céus intransponíves, ou navios que nunca naufragariam, edificações suas, irremediáveis.

Desse modo, sentindo-se apenas mais um a lambuzar-se na lama cotidiana da Terra, preferiu a parcialidade de seu sensor visual, para não sofrer tanto de desamor, para não se deixar mover pela desfaçatez e o descaso. Desligou-se, máquina, no transcorrer do ano de 1986. Desligou-se, máquina, o argentino Jorge Luís Borges. Desligou-se, máquina, em sumiço polêmico, um homem que apenas queria morrer. Um homem que apenas queria matar o seu corpo, e que não conseguiu. Borges vive no ser da sua Palavra. Borges, poesia e prosa, vive!

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