terça-feira, 16 de agosto de 2011

O problema


Por Germano Xavier

Continuação para o conto "A Solução",
de Clarice Lispector.


Almira numa certa noite inventou de fazer uma tereza com os únicos três lençóis de cama que possuía, depois de passar anos serrando surdinamente com uma faca o gradil da janelinha da cela, e num vulto sumiu no mundo novamente. Não deixara nada como recordação. Na prisão, virara mito. Podia ser novata ou veterana no xadrez, mas o fantasma da “elefanta de circo” rondava as bocas em papeação constante, em quaisquer que fossem os corredores e em todos os pavilhões. Mas o certo era que ninguém mais tinha ouvido falar em Almira. Algumas colegas de cela, mesmo passados dois anos ou mais da precipitada fuga, ainda empregavam lembranças da gorda em suas cabeças vazias. E diziam em pensamento que ela agora devia estar comendo, comendo chocolates, comendo como sempre comeu, empanturrando-se de qualquer que fosse a coisa, enchendo-se de qualquer matéria e preenchendo aquela pança insaciável, aquele estômago insociável. Almira ficou sendo procurada pela polícia por todos os cantos da cidade, até recompensas foram oferecidas a quem tivesse indícios do local onde ela pudesse estar. Mas nada acontecera. Almira jamais fora encontrada. Depois de mais alguns anos, o caso foi arquivado e posteriormente dado como encerrado pelos investigadores. O mais curioso de tudo aconteceu faz bem pouco tempo, quando um crime chocou a pacata cidade onde o que de mais cruel tinha acontecido em toda sua curta história de emancipação fora justamente o estouvado ataque a garfos de Almira em Alice no restaurante. Alice, que ficara afônica depois da garfada no pescoço que recebera de Almira em idos de antanho, havia saído de casa para comprar produtos alimentícios no armazém do bairro. Naquele dia Alice não voltou para casa. Ficou no meio do caminho atrapalhando o tráfego inexistente no justo momento em que estava fazendo o percurso de retorno. Os olhos esturricados dos passantes denunciavam a magnitude do caso. Falaram depois, quando o alvoroço se distendeu do imaginário da população, que a pobre moça morrera em plena rua com duas colheres enfiadas nos olhos. A polícia, na hora, chamou por alguma testemunha, porém ninguém se prontificou a dar algum tipo de depoimento. Exceto por um menino marronzinho de seus doze ou treze anos de idade, que dissera estar descansando o corpo do sol graúdo na calçada do bazar do velho Apolônio enquanto arrumava sua caixinha de engraxate. Falou que vira uma mulher magra entrar pela casa de número ímpar da esquina. Os policiais pediram mais informações, mas o menino não soube oferecê-las. O que podia dizer era já tudo e já gasto: uma mulher magra entrando na casa da esquina de número ímpar. Coincidência ou não, a casa em que Alice vivia era contígua à casa a que o menino se referia e que, por sua vez, era justamente a casa que fora de Almira no tempo em que andavam juntas e iam para o escritório labutar no mister da datilografia. A polícia levou o caso a estudo, agiu secretamente e fuçou a vida da possível assassina com a preocupação de não invadir a privacidade da mulher. Era consenso na corporação só agir em definitivo caso provas cabais pudessem ser levadas adiante e posteriormente servirem na incriminação da moça suspeita. Nada descobriram. A moradora da casa de número ímpar da esquina era realmente magra, tinha praticamente a mesma altura da desaparecida Almira e gostava de ficar olhando para o aquário quando a tarde ia caindo no horizonte. Fora isso, nenhuma pista segura. Muitos associaram o fato a uma provável vingança de Almira, mas Almira não existia mais. A gorda e psicopata Almira era apenas uma das lendas urbanas daquela cidadezinha incrustada onde o vento faz a curva. Nas noites escurosas, um ou outro sempre levantava o causo da mulher que apagava a voz das pessoas enfiando garfos em seus pescoços, mas nunca contavam o causo da mulher que cegava as pessoas enfiando colheres de sopa dentro dos globos oculares. Diziam ser maldição alvissareira, coisa ficciosa demais. E logicamente as crianças morriam de medo quando ouviam. Por isso, de noite, dormiam encolhidamente intranquilas e enroladas em seus cobertores de sonhos, e também de pesadelos.

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