quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Samuel e eu


Por Germano Xavier

Ao ler Fim de Partida, de Samuel Beckett.


Samuel me assombrará no instante das cabeceiras mornas, sonolentas ainda, em acordes de manhã desdormida. Ele me dirá que não é assim que devo olhar as coisas dessa vida e que a vida é mesmo uma junção de esperanças... mesmo esperanças fajutas, mas esperanças. Eu acordarei sobressaltado, quase indiferente, porque sou um mero mortal e desfaço uniformidades de unhas de pé. Aí o Samuel me dirá vai, e eu ainda dormindo em mim. Samuel dizendo já chega e que já é hora de levantar para a vida, e que é hora já de não haver mais horas nem tempos nem aqueles medos medonhos e medíocres de viver e ser feliz por ser simplesmente o que realmente somos... e eu despertando, paulatinamente, um passo de cada vez, um cílio de cada vez, ainda confuso, aturdido em me prestar ouvidos logo pela matina viva e justo ao homem que li na madrugada inteira, insone. Samuel apontará os indicadores magrelos e sem vida aparente para a lâmpada do meu aposento e me dirá acenda, e me dirá brilhe, e me dirá clareie. E eu levantando o corpo pesado, toneladas de pensamentos, direi que estou, que apenas estou e que ouço a palavra verde da vida, verve que quero no dorso carregar, no vulto e casa que sou. Ele, o homem que li na madrugada de hoje, levantar-se-á da cabeceira morna e começará a caminhar caminhos ao meu lado, me dizendo dizeres de pássaros, mesmo aqueles sem asas, mas pássaros. E na revolta dos meus frios, dirá siga e que eu consiga ser o que sempre quis e sempre desejei e sempre sonhei para mim. E me dirá que a vida é aquele galho que se rompe, talisca, fina, que se acende, gás, torto, que se perde fluido, morte. Dirá, o Samuel, que a vida é morte e que morte sempre haverá de existir para quem se vive a vida, do jeito que se quer viver, independente de tudo. E eu já de pé, ligeiramente acordado em acordos, percebendo que o fim sempre está na partida, e que um dia tudo há de acabar e ter a sua partida e não o seu fim, porque tudo que acaba não acaba, apenas parte, apenas parte... apenas é parte de uma água quebrada capaz de unir-se e fazer-se oceano, imensazul de cores, todas transformadas em azul. Dirá lute, o Samuel, dono de conselhos mil em monossílabos complicadíssimos, mas que os sentidos os decifram, porque literatura é também suor e testa franzida e retesada, dor de coração que se abre e de girassol que se curva. Samuel insistirá eternamente a passear passos ao meu flanco esquerdo, avisando olhe o perigo e tocando meus ombros não é por aí... e eu modelando perplexo a vida que se instaura estância, instância feita de instantes e sangues no papel, aqui, em mim, dentro, fundo, poço, calabouço de mim, masmorra de mim, guilhotina de mim, foice de mim que corta cortes no breu do mundo e que me separa o joio e que me diz vale o joio, não apenas o trigo. Ah, Samuel, você não acha mesmo que vou te esquecer assim foi só um momento, não é? Eu que te provo o gozo de meu deleite no pobre texto que agora redijo, mas que é alma pura o meu texto. Alma pura, Samuel... Eu que sempre lembrarei na revolta dos meus frios, que você, Samuel, você, dirá siga e que eu consiga ser o que sempre quis e sempre desejei e sempre sonhei para mim. Eu que sempre lembrarei você, que me dirá que a vida é aquele galho que se rompe, talisca, fina, que se acende, gás, torto, que se perde fluido, morte. Você, Samuel, que me dirá que a vida é morte e que morte sempre haverá de existir para quem se vive a vida, do jeito que se quer viver, independendo de tudo. Eu que sempre recordarei do dia em que eu, já de pé e ligeiramente acordado em acordos, percebi que o fim sempre está na partida, e que um dia tudo há de acabar e ter a sua partida e não o seu fim, porque tudo que acaba não acaba, apenas parte, apenas parte, Samuel...

2 comentários:

Tatiani Távora disse...

tudo o que parte permanece,
de alguma forma.

Yellow Morning Bell disse...
Este comentário foi removido pelo autor.