terça-feira, 16 de outubro de 2012

Acerca de duas memórias



  Por Germano Xavier

O caráter de construção e preservação do esquecimento na literatura: Diálogos da memória em Menino de Engenho, de José Lins do Rego, e em O Fazedor, de Jorge Luis Borges.


Parafraseando Mário Benedetti, poeta uruguaio, é concebível e deveras aplicável, ainda mais em se tratando de uma expressão artística, espaço ao qual ligado está a literatura, a idéia de que lembrar é também esquecer. Como claro também é o fato de que é o trato com a linguagem, com a palavra, que irá conceber o natural caminho para as diferentes essências que, porventura, variados autores possam fazer emergir do misterioso mundo de suas personagens e, por conseguinte, da elaboração do conjunto de reminiscências que dão à trama a passível classificação memorialística. Pegando dois importantes nomes da literatura da América latina, o brasileiro José Lins do Rego e o argentino Jorge Luís Borges, e duas de suas respectivas obras - Menino de Engenho e O Fazedor, respectivamente -, pode-se averiguar a incidência de manejos discrepantes, principalmente no que tange aos caprichos da memória, que pouco pode ser aproveitado se colocados os dois ante um jogo de equilíbrio e similaridade enredo-estilístico.

Autor de diversas obras, Borges sempre esteve no mais alto patamar do cânone literário. Dono de uma palavra tecida sobre o sudário do misterioso, do secreto e mitológico, do metafísico e do fantástico, o homem que tinha verdadeira paixão por livros, principalmente enciclopédias, é possuidor de uma linguagem marcada por construções e narrativas labirínticas - leia-se "labirinto" como lugar de achamento e perdição. Para ele, é no espaço do texto onde tudo pode acontecer, inclusive o despertar para a vida, inclusive o entendimento perante o dilema da morte, genitora de outros nascimentos. Em Menino de Engenho, José Lins do Rego agrega valor ao tempo pós-texto, dando ao leitor um momento único seu, de completo deslumbre e construção. O fator memória, aqui, não está completo apenas através da existência do texto em si, dependendo diretamente das conjeturas que o leitor irá produzir durante toda a aventura do livro.

O Fazedor, publicado primeiramente em 1960 é, segundo ele, seu livro mais pessoal, mais íntimo, mais próximo do homem Jorge Luis Borges. Quase sem linearidade, desprovido de uma unidade morfológica e temática, misto de poemas, ensaios e contos, O Fazedor revela um Borges preocupado com as nuances de sua vida "comum", como pode ser percebido já no texto de abertura do livro intitulado homonimamente. Neste texto, falando sobre sua cegueira, Borges finaliza com a construção: "Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao afundar até a última sombra". É claro que se faz preciso perceber que, por utilizarem de suportes/gêneros diferentes – contos e poemas em Borges e o romance na obra de José Lins -, a apreciação dos constituintes estruturais e semânticos da memória nos dois casos dá-se de maneira também disforme.

Em Menino de Engenho, o contexto social, a trama, os espaços desbravados pelo narrador, a utilização estilística apropriada – uso de verbos no passado temporal, alusão à personagens “simplórias”, utilização descritiva e perspectiva mais coloquial da língua, entre outros fatores, fazem com que haja uma aproximação do interlocutor quase que totalmente desvinculada daquela verificada com a obra borgeana. Já este, remoído e remoendo-se diante da tão extensa potência da memória, e agora sobrepujado pela presença da possibilidade do esquecer, do deslembrar o sentido das coisas e suas faces, suas sensações e iminências sígnicas, parece amargar um sentimento de derrota frente à evolução do seu corpo, do seu organismo, ou seja, seu texto. Ainda no texto inicial da obra, Borges questiona: "Por que lhe vinham essas lembranças e por que chegavam sem amargura, feito mera prefiguração do presente?", duvidando, talvez, ou simplesmente incrédulo ao suspeitar da existência dessa forma viva, autônoma, agente de si: a memória.

José Lins é menos inquiridor, não tendencia sua obra ao mistério do oculto. Ao contrário de Borges, narra esclarecendo, não escondendo. A memória em Menino de Engenho parece mais palatável, verossímil, palpável. Tudo parece estar diante dos olhos de quem lê, a poucos segundos de uma compressão. Atulhado de emoções e recortes de lembranças, livrescas ou não, Borges altera a morosidade da mecânica das reminiscências e põe na superfície do tempo, à mostra de tudo e de todos, o rosto que há por debaixo do capacho humano, do tapete de nossa mente, livrando-nos de certas mortalidades e fragilidades infantis. "O que morrerá comigo quando eu morrer?", pergunta o argentino, falecido em Genebra no ano de 1986. Percebe-se a sapiência e o alumbramento diante da existência de algo mais que não somente a armadura do corpo, da matéria, e essa percepção vai perlongar as páginas do livro inteiro.

“O quarto do meu Tio Juca vivia trancado de chave o dia inteiro. Ali só entrava a negra que lhe fazia limpeza e mudava as roupas da cama.”, escreve Lins no parágrafo inicial do capítulo 30 de seu livro. Não há a existência de um plano interrogativo, de descrença com alguma anormalidade factual ou alguma variante polissêmica que possa impedir a instantânea apreensão do sentido. Seco, sem jamais deixar de atrair, é como se Lins escrevesse/cozinhasse o caldo de sua memória com o mais básico dos temperos. O argentino, mais a frente, no texto Dreamtigers, diz assustado: "(Ainda me lembro dessas figuras: eu, que não consigo recordar sem engano a fronte ou o sorriso de uma mulher.)" É a memória que persiste em não morrer, mesmo dentro da escuridão da visão ofuscada, opaca, translúcida. O susto de ter um outro olho, um olho que não para de lembrar, de ver, de rememorar, de reviver. Após iniciado o confronto, Borges retalha-se em perguntas, a tomar como exemplo: "O que pratiquei com fervor na infância?" - quase uma tentativa de descobrir as razões que o fizeram possuir o "bem" ou o "mal" do guardar tudo, dentro de si. E continua: "Você se suicidou naquele dia?"; "O que ele sentiu?"; "O que buscam os espelhos?"... no centro do furação, no redemoinho da batalha que o autor trava consigo mesmo, surge a presença de Deus: "Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número?", e finaliza o seu argumentum ornithologicum cosendo a frase: "ergo, Deus existe".

A experiência de conhecer o algo a mais que apenas humano faz com que Borges receie, sem muito titubear, que a morte não passa de uma ilusão. Portanto, o esquecimento, ou seja, a morte do que um dia existiu, é simplesmente uma mentira que criamos, ora por nos acharmos fracos ora por não tendermos à resolução de nossos próprios problemas, quaisquer que sejam eles. Em Lins, é como se tudo morresse no átimo de desfecho da atividade leitora, porque nada dentro de sua memória tem o caráter de imortalidade. Talvez não desprezando o tino que evidencia que a morte pode ser uma invenção da debilidade do homem, uma espécie de doença. E o sonho, em Borges, como avesso de tudo, "o sonho de um é parte da memória de todos", escreve no texto martín fiero, onde ainda cita: "o que aconteceu uma vez volta a acontecer, infinitamente". Navega pelas estradas do seu passado tentando averiguar os motivos para tanta liberdade entregue a sua memória, tanta incapacidade de manipular, domar o seu ato de esquecer ou o de lembrar. Lins apenas navega, e como navega, sem se preocupar com o que há por debaixo do espelho d’água. Depois de já ter lutado consideravelmente contra tais mistérios, Borges relata: "O esquecimento devora tudo". Como um rolo compressor, o "parecer e o não ser" adquire o que tanto ele temia: a imortalidade. E o que fazer diante de uma coisa que nos parasita, que mora dentro de nós e que não podemos cercá-la? Buscar o silêncio, seria essa a resposta? Calar-se? Deixar-se? O que operar em nós mesmos quando somos muitos e ao mesmo tempo não somos ninguém? Qual a ordem do jogo e a dos dominados? Nesta celeuma, "sempre se perde o essencial?", interroga Borges. Qual a voz que prevalece, qual o som que fica? O que vive, se "tudo já teve fim há muitos anos?" O que permanece, se "toda glória é somente uma das formas do olvido?"

A leitura borgeana não adormece quando fechamos o livro. Toda uma esfera de edificações se apronta no momento destinado à reflexão, o que parece não acontecer com o livro de José Lins do Rego. Abre-se, então, a porta que dá para o vestíbulo da irremediável memória, este demônio que temos dentro de nós, tantas vezes ponto de partida para sofrimentos, angústias e alegrias várias. No labirinto onde nos perdemos e nos encontramos dia ante dia, noite após noite, assombro vis assombro, resta-nos contentarmos com a ideia de que não estamos sozinhos dentro de nossa individualidade, que não estaremos mortos depois da morte, que não estamos vivos quando pensamos que estamos. Até porque, o que existe por detrás dos espelhos, pode não ser muito bem o que imaginamos que seja. Porque nada pode ser tão óbvio quando suspeitamos que a escuridão é o nosso maior vigia.

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Fragmentos da memoria by ~kickban"
Deviantart